Que beija de olhos fechados pra ir profundo no clima, mas de vez em quando dá uma espiadinha só pra ver se os olhos dele estão fechados também... E se estiverem seus dedinhos do pé dobrarão com certeza...
Que quando vê uma borboleta voando baixo tem certeza de que algo bom vai acontecer no seu dia, mas se for uma borboleta azul e preta ela pára tudo porque sabe que o amor está no ar...
Que se fosse um bicho do ar seria uma borboleta – e muita gente sabe disso!, porque de uma lagarta horrorosa, que todos rejeitam, ela pode se transformar num espetáculo multicor, se ninguém interromper o processo no meio do caminho. Mesmo que na forma de borboleta ela viva apenas semanas ou somente dias...
Que se fosse um bicho do mar seria um cavalo-marinho – e pouca gente sabe disso, porque os cavalos-marinhos vivem em pares - machos e fêmeas - e são monogâmicos e quando um da dupla morre o outro acaba morrendo também... deve ser por solidão... por compaixão... por saudade...
Que não tem medo de baratas, nem das voadoras, nem de lagartixa, nem de cachorro solto, mas vira uma estátua se vê de longe um rato, mesmo que dentro de uma gaiola! Que tem pavor de rato tanto quanto tem pânico de pessoas mentirosas...
Que não sabe jogar nenhum esporte coletivo com bolas, porque quando criança a quadra de esportes da escola ficava ao lado do rio na cidade pequena e se a bola caísse no rio ela teria que se jogar nas águas “sujas” para buscar a bola, daí ela preferiu ser assistente do juiz. Talvez por isso ela não curta muitas competições, apesar de ganhar a maioria das disputas que ela encara...
Que adora água, chuva, poça d’água, chuveiro, torneira ou mangueira aberta, tudo é uma diversão ou até uma sinfonia, mas se ela fica de frente pro mar o seu mundo pára porque ela, ali, está diante da perfeição...
Que se encanta com uma bolha de sabão voando alto, soprada pelo vento, como se aquela bolha fosse um dos seus sonhos indo encontrar com Deus, mas que muitas vezes se imagina dentro dessa mesma bolha, sendo jogada para lá e para cá pedindo, por favor!, para tudo voltar ao normal...
Que tinha medo do bicho que morava embaixo da sua cama, e toda noite pedia mansinha: “pai, vem olhar debaixo da minha cama!”. Hoje o bicho cresceu e de “papão” mudou seu nome para “solidão” e ela ainda tem medo dele...
Que pedia para alguém contar histórias para ela dormir, mas na verdade ela não queria dormir, ela queria o enredo, o sonho, a fantasia. E ela ficava danada se o narrador dormisse antes do “e viveram felizes para sempre!”. Talvez por isso hoje ela ainda fique zapeando até altas horas procurando uma história na TV... E se a história for boa ela vai assistir de novo, porque um final feliz sempre vale a pena mesmo que assistido uma centena de vezes...
Que tem todas as manias do mundo, como a horrorosa mania de roer unhas... Ela acha horrível, mas não consegue explicar o prazer que isso lhe dá... Ou a mania de colocar as coisas em ordem, ordem simétricas... E que nem liga, ou até mesmo não repara, quando os amigos tiram tudo do lugar só para rirem dela arrumando tintim por tintim...
Que se fosse rica, do tipo que não precisa trabalhar para se sustentar, estudaria astrologia, porque ela acredita que o universo sim conspira para tudo em nossa vida, que nossos passos são diretamente influenciados pela posição dos astros no espaço e seu magnetismo... Que era totalmente aquariana, mas que aos-vinte-e-nove-com-retorno-de-saturno assumiu as características do seu signo ascendente: Virgem... Ah! Mas sua lua continua sendo de Escorpião!
Que não tem ritmo nem afinação... Pra dançar... Pra cantar... Pra assobiar... Mas todo dia acorda com uma música na cabeça! E a música só vai embora se alguém cantar outra perto dela, porque aí o repertório muda num segundo...
Que não pode passar perto de uma padaria, porque para ela uma vitrine de quitutes de uma padaria é pior que um TV de cachorro para um cachorro, mas se as ‘quitandas’ forem feitas por uma mão conhecida aí já era, ela é capaz de comer sozinha uma bacia de biscoito de polvilho assado sem dó...
Que adora comer bem, comer comida de sabores diferentes, sabores exóticos... Que adora comer e dizer: “Huuuuuuuuuum”, mas que odeia comer sozinha, apesar de disfarçar bem...
Que adora dormir, que dificilmente perde o sono, mas que torce para vez ou outra chover durante a noite só para gastar uns minutinhos do seu sono escutando o barulho da chuva. Mas o que ela gosta mesmo é de num dia frio se cobrir todinha e deixar os pés de fora tomando um vento! Não... o que ela gosta mesmo é de dormir abraçada... protegida...
Que sabe que proteção ela tem da polícia, do pai, da mãe, do irmão, mas que aprendeu que o seu anjo da guarda é o seu maior protetor e está o tempo inteiro ao lado dela e que por isso ela reza até hoje: “Santo Anjo do Senhor, meu zeloso e guardador...”
Que reza pro “Papai do Céu que tudo vê...” mesmo nos dias de hoje, com suas contas bancárias lutando para manter o saldo azul, com seu chefe marcando uma reunião urgentíssima para sexta-feira no final do expediente, com sua casa implorando uma faxina daquelas. E que quando reza diz com toda força que lhe é peculiar que o “Seja feita a Tua vontade” seja mesmo a vontade dEle...
Que aprendeu a dirigir automóveis, mas tem pavor de se imaginar na direção de um... Talvez por isso ela more tão perto do serviço, da casa dos pais, das amigas, dos barzinhos...
Que sonha todos, ou quase todos, os dias e que sonha colorido. Que sonha até acordada, que se pega criando diálogos várias vezes ao dia... E por isso ri, ri sozinha, ri muito... Ri e faz outros rirem... e adora uma gargalhada, daquelas bem altas, de envergonhar!
Que tem saudade das amizades daquela escola que a bola caía no rio e que fica ansiosa por saber que a turma vai se encontrar depois de quinze anos... Que tem saudade dos amigos que vieram depois da escola, da faculdade, do trabalho... Que tem saudade dos amigos que ainda a pouco estavam papeando através de um teclado, amigos de agora trocando experiências comuns do passado...
Que tem saudade dos avós que não chegou a conhecer e dos que a sorte lhe sorriu deixando por um bom tempo que dividissem a mesma história. Dos avós que não conheceram os teclados do computador, mas conheceram os teclados de um piano, as cordas de um violão, as agulhas de uma caixinha de costura ou mesmo as agulhas de uma enfermaria... Conheceram a vida, aprenderam com ela, passaram adiante e seus conhecimentos e educação chegaram até a menina...
Que sonha em um dia poder responder perguntas do tipo: O que é relâmpago? Por que o fogo queima? O que aquele homem está fazendo dentro da televisão? Como eu nasci?... Mas que não quer de forma alguma estar sozinha para responder essas e outras milhões de perguntas que poderão surgir, ainda mais que ela não vai saber: Como se instala um chuveiro? Como se troca uma tomada de lugar? Como se pinta uma parede? E se o encanamento estourar?
Que sonha, custe o que custar, tropeçando, caindo, sacudindo a poeira, dando a volta por cima, em poder ser sempre só uma menina...